Wednesday, May 03, 2006


A tarde já ia alta com um sol orgulhoso e forte, cheio de calor e raios de luz que inundavam a baixa da cidade dando uma cor de verão às montras já despidas de clientes. Arrastei o meu corpo pelas ruas em busca de um local onde atracar, um porto seguro, um paraíso para assentar os ossos, que cansados reclamavam por paz. Numa calçada empedrada da velha Lisboa busquei inspiração para uma música e nas suas pedras já gastas dancei uma melodia inventada enquanto os olhos se perdiam nas paredes de mais uma igreja que brotava do chão imortal e católico. Os carris do eléctrico, brilhando de uso, fazem-me escorregar e deslizo suavemente até uma praça onde as arcadas reinam e cercam o centro espaçoso e fausto em história. A estátua do Rei com o seu cavalo esbranquiçado enfrenta os ventos vindos do rio que de forma suave cortam as palmeiras da marginal. Em passo acelerado subo uma colina atrás do sol que me foge por entre os telhados cor de tijolo da cidade. Brinco com os seus raios por ruas, ruelas e avenidas as rotundas não me intimidam e nem os cruzamentos me afastam do seu calor. Dou por mim numa pequena praceta, linda no seu encanto próprio de recanto escondido do mundo. As paredes cor de mármore dão um ar imponente ao local que cintila de paixões e histórias, sonhos e poesias. Num canto uma esplanada, não tinha muitas mesas, quatro, talvez cinco, meia dúzia no máximo. O empregado de ar jovem sorria com aquele sorriso aberto de quem gosta de receber. Sentei-me, humm que cadeiras confortáveis, ajeitei-me entre almofadas e olhei para a lista nova e ainda por estrear. Um batido pedi com vontade, não um batido qualquer, pedi um de banana com gelo, imenso gelo para acalmar o calor daquele fim de tarde saboroso, agora em tons de morango.

Bebi a minha bebida enquanto namorava as muralhas do castelo do outro lado da cidade. São imponentes, marcadas por sangue e lágrimas e gentilmente espalhadas sobre pequenas ruas de casas gastas e rostos cortados pela vida. As ameias ainda com o cheiro do azeite quente nos seus buracos espreitam como meninos traquinas por entre as poucas nuvens que pintam que por ser azul é nosso. Desço o olhar e beijo a Sé com as suas torres perfeitas de quem aponta a Deus e cumprimenta o homem. Um edifício de fé e arte que governa da Madalena uma paróquia de gente boa. Volto-me agora para o Tejo, e tão bonito, um olhar mal dado e para-me a respiração. As gaivotas mergulham nas suas águas esverdeadas com um perfume de naus e caravelas carregadas de açafrão e canela. Milhares de vidas já cruzaram aquelas águas, histórias perdidas nas marés de muitos mares e contada pela espuma de cada onda.

De copo na mão despeço-me do empregado que gentilmente matou a minha sede e volto de sorriso nos lábios para o labirinto de lojas e ruas, para um mar de pessoas, de vidas, uma imensidão de amores e encontros, de desgostos e corações quebrados que vagueiam esperançados pelo Chiado. Ah como eu adoro este nosso Chiado, sinto o seu perfume de fado assim que ponho os pés na Rua Garrett e delicio-me com as suas cores de primavera atrevida. Sabe sempre bem voltar a casa. Já imaginei longas viagens aqui, paixões e loucuras foram aqui sonhadas, contratos assinados, namoros rompidos e vidas partilhadas, de tudo já fiz aqui mas acima de tudo vivi aqui, em cada pedra do chão, em cada edifício que não morre, em cada esplanada e em cada loja. Tudo me faz respirar melhor, até o fumo, e no final do dia quando o sol dorme e a lua reina o Chiado não morre, renasce príncipe do escuro dando vida ao Bairro que é Alto e que das suas tascas, bares e restaurantes nos cumprimenta com ar comprometido como aquele namorado que de mão dada passeia tímido pela rua. É assim o meu Chiado, o nosso Chiado, aquele Chiado de Pessoa, de Garrett, de Lisboa e Portugal, de todo o mundo e de todos, com o mesmo sorriso com que recebe uma criança.

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