Friday, May 05, 2006

Jantarada



A sala era pequena para aconchegar toda aquela vista. Lisboa estava rendida aos pés daquele vidro enorme que nos servia de janela e transportava para telhados distantes e luzes foscas que iluminavam as ruas despidas da mouraria. Ao longe o ar imponente da cidade iluminava abria as nossas almas em tons altivos e de orgulho sobressaindo na escuridão da noite. A mesa estava quase cheia quando cheguei. A luxuria da conversa era elevada e a degustação das palavras era feita em volume alto e acompanhada de gargalhadas soltas e abertas. Sentei-me na ponta do grupo, confesso que estava cansado mas ao mesmo tempo não me apetecia dar. Gosto de todos eles, bem alguns não conheço tão bem para dizer isso, mas agrada-me a sua companhia mas ontem algo me fazia sentir ausente. Sentia-me como se estivesse de fora a observar um jantar no qual não participava. Refugiei-me no meu canto e matei as mágoas num chouriço assado servido num pão que pecava por ser frio mas que se deixava comer de forma macia e agradável ao paladar.
Ao sabor de uma água mantive-me de fora dando aso aos meus pensamentos mais intimidos e navegando por mim a dentro como se nada à volta existisse. Confesso que também não senti que o grupo sentisse a minha falta, estavam demasiados entretidos com as suas histórias e eu agradeci por isso. Estava absorvido nos meus pensamentos quando um prato de porco com natas interrompeu o meu espirito e colocou-se à minha frente desafiando a minha tentação. Devorei-o sem grande prazer, precisava de comer, estava fraco de um dia mal alimentado e cansativo mas a comida sabia-me a pó, aquele pó seco e arido de um deserto de pedras e calhaus onde o sol queima mas não brilha, num ardor de arrancar a pele e fritar a carne que luta para não se soltar dos ossos doridos de tanta pancada.
Decidi caminhar um pouco pela sala, acalmar o meu espírito naquela cidade que é minha e que à noite chorava comigo pelas pedras sujas de uma calçada que é portuguesa e traz consigo fado e guitarras. Quase que lendo os meus pensamentos o dono do restaurante coloca uma música de fundo. É jazz negro, melancólico, sofrido, uma música que entra em sintonia comigo e pela primeira vez na noite me faz sorrir. Olho à volta e fecho teatro, todo aquele jantar é teatro. Quando será que as pessoas deixam cair as máscaras e parám por momentos de jogar jogos com a vida? Talvez nunca, talvez isso seja impossivel, talvez nem valha a pena acreditar.
Chegou o momento de ir embora e confesso que o desejei desde o minuto em que pousei o garfo após a ultima garfada de carne. Estava cansado, estava extremamente cansado e dei por mim encostado a um pilar, sozinho, de cabeça baixa e perdido dentro de mim. Os meus companheiros de noite estavam animados e ainda me conseguiram arrastar até um bar, felizmente estava fechado e depois de filosofar sobre as estrelas e planetas ruma-mos a casa fechando a noite. Não percebo porque não desfrutei de um jantar de amigos, costumava adorar, talvez fosse o cansaço, talvez fosse o tempo, ou talvez fosse eu, possivelmente fui eu, mas já passou. A sensação que tenho é que estou sempre a ser avaliado e ontem não quis mais, não quis dar chances de ser comentado, de poderem avaliar-me, fiquei quieto no meu canto e não procurei holofotes nem lugares especiais na conversa, talvez assim, despercebido, consiga ter menos pressão e ser mais feliz.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

São horas de eu estar a dormir,cheguei a casa há pouco e não resisti...isto é viciante.Será assim importante a avaliação que os outros fazem?Não seremos nós próprios que nos auto avaliamos duma forma demasiado implacável?O importante é o que eu sou.Alguém dizia que «a árvore boa dá bons frutos»,isso é o mais importante.Sem querer «dar conselhos piedosos»,para que não pensem mal de mim(é uma piada)desejo que «tires esse peso dos ombros» e que sejas todos os dias mais feliz do que ontem.

03:05  

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