Sunday, April 29, 2007

O Velho

A bola rolava lenta na relva molhada e escorregadia. Os miúdos corriam sem sorrisos atrás dela, alheados de tudo, mesmo da chuva que ameaça voltar a cair. O som das rodas das bicicletas tinha agora morrido no ar e já nem a conversa das copas das árvores ousava suspirar naquele momento. Cortando o jardim, um pequeno banco de madeira pintada de verde jazia ao fundo de um pequeno caminho cimentado que acompanhava o lago na sua mal desenhada circunferência. A imagem desfocada de um vulto dobrado sobre si próprio desenhou-se no horizonte quebrando a esquadria geométrica das linhas do banco. Sentado numa das pontas um homem mantinha o olhar apontado para o chão e se prostrava imóvel quase nem respirando. As cores já há muito que o tinham abandonado. Os sapatos, já gastos por quilómetros de estrada, encaixavam nos pés metidos para dentro, fechados a sete chaves por uns atacadores partidos. As calças, gastas e envergonhadas, assentavam num negro carregado sobre o corpo mostrando a dor que sentia na alma. O longo casaco, fechado com raiva, estava ainda húmido da chuva e já há muito que não estava na moda. Era de um verde-escuro. O chapéu, meio de lado, tapava parte substancial do rosto, mostrando apenas alguns cabelos já brancos que teimavam em não se esconder do mundo. Toda aquela imagem era degradante, numa escuridão de sentimentos e emoções. Curvado, rendia-se perante a força que o tinha levado à solidão. Mais próximo é possível ver uma barba já perdida, de um branco sujo que em tempos já havia sido loiro. Os lábios, outrora apaixonados e eloquentes, fechavam-se agora em dois muros grossos e secos, bloqueando qualquer som ou sentimento. A cara rasgada pelos anos exibia com orgulho todas as batalhas, cravadas com dor em cada ruga. Algumas profundas e largas desenhavam naquele rosto, marcas de inegável paixão e desapareciam na pela na solidão cortante do momento. Os olhos, vazios, de cor gasta e enrugados por anos de desgostos e tristeza, buscam no cinzento do chão um motivo para pararem de chorar. As faces cansadas já há muito não sentem um beijo, um toque, um gesto apenas que por pequeno que seja faz a diferença entre o tudo e o nada. Num olhar envergonhado e escondido mostra com desgosto a sua solidão. Sozinho na vida e isolado nos sentimentos. Levanta a cara e olha de frente. No meio dos cabelos já brancos e das rugas marcadas da pele reconheço um sentir, uma emoção, um traço único que não morreu com os anos e com a solidão. Aquele velho dobrado, acabado e sozinho que morre por dentro sentado num banco de jardim, enquanto o mundo passa sem sequer olhar, sou eu.

2 Comments:

Blogger Marta Vinhais said...

Solidão...o verdadeiro problema...
Na velhice aguça-se...
Está óptimo o texto, Bruno.
Gostei muito.
Até já
Beijos e abraços
Marta

21:47  
Blogger Maria said...

É triste...
morrer por dentro.
A solidão é uma consequência do egoísmo e do individualismo.Se cada um fizesse um pequeno esforço por se abrir ao outro deixariam de existir tantas solidões.

00:02  

Post a Comment

<< Home