Wednesday, September 27, 2006

Mais um dia

O sol hoje levantou-se com preguiça. Arrastou-se até à janela e espreitou pelo vidro ainda frio da noite para uma rua que ainda dormia deserta. Em passo lento e pesado encaminhou-se para um duche que tomou com água a ferver, quase queimando a pele mas aquecendo a alma e fazendo apagar as rugas que a cama lhe tinha feito. As gotas grossas de um chuveiro novo a bater-lhe na face, brindavam-no fazendo o seu caminho através do pescoço suave e longo e caindo com força sobre os pés que ao longe suportavam todo o sono que ele ainda sentia. De toalha enrolada, ligeiros arrepios de frio e cabelos molhados e a pingar fugiu descalço para a cozinha onde de olhos semi serrados buscou o pacote daquelas bolachas especiais que ele só encontra naquela loja da moda. Sentou-se e deixou-se navegar pelo sabor doce e granulado daquelas achatadas formas que num ritmo cadenciado o alimentavam perdendo a sua postura a cada trincadela dada. Por fim rematou a refeição, se a isto podemos dar tal nome, com uma golada de iogurte. Era de morango, como gosta, aliás como só ele gosta, gelado e bebido de seguida fazendo apenas uma pequena pausa para o saborear sobre a língua. Passou pela sala e colocou um som, baixo para não incomodar os vizinhos que ainda dormiam, mas muito pessoal. A escolha não era difícil e o cd acabou por fluir nas suas mãos até acordar no leitor. De volta ao quarto, e já com os olhos bem abertos, vestiu-se em tom apressado como se o relógio só naquele momento tivesse a contar. Fechou o quadro dando o nó da gravata e rematando com aquele toque especial no cabelo que ninguém nota mas que ele, mecanizado, já não consegue deixar de dar. Já no carro muda o estilo e no leitor uma banda de rock faz estremecer os vidros fechados para não se perder o ar condicionado. A viagem, embora curta, mostra-lhe Lisboa, a mesma Lisboa que ele aprendeu a amar e da qual sente falta mesmo quando se afasta apenas por uma tarde. Habituou-se às ausências, toma-as como certas e consequências da vida, mas a paixão que sente fá-lo sempre regressar e olhar de um alto de uma qualquer colina para a cidade que o viu nascer e num entardecer mais sentido deitar uma lágrima ao rio, fazendo-a descer pelas muralhas do castelo. Em 10 minutos a viagem termina e já no elevador que o tira da garagem troca de personagem e assume o profissional. Endireita-se, projecta o dia de olhos fechados e quando as portas se abrem tem já aquele sorriso confiante de quem sabe o que quer e como o quer. De cabeça levantada avança para o gabinete e sentado à secretária murmura umas últimas palavras “que Deus me proteja”. Estão lançados os dados para mais um dia.

3 Comments:

Blogger Marta Vinhais said...

Que foi, tenho a certeza, brilhante!
Sinto o mesmo em relação ao Porto -mas obrigada por me levares a "visitar" Lisboa, a Lisboa que sentes e te faz feliz
Beijos e abraços
Marta

21:41  
Blogger Pitucha said...

Muito bonito. E todos nós nos desdobramos em várias personagem, não é?
Beijos

08:17  
Anonymous Anonymous said...

Do poeta angolano Roderick Nehone :

"(...)
Estás ao meu lado
aqui, apesar da distância
estás mais aqui
pelo tempo que se esfuma
e o amor que perdura
degelando os icebergs
que as nossas mukandas
bem sabem ludibriar
Gostaria de ter-te
mas se te tenho!
em mim, claro!
(...)"

Beijos para Luanda

16:21  

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