Monday, July 03, 2006

Uma tarde na falésia

Um fio de luz correu pelo vidro do carro encandeando-me e ao mesmo tempo aquecendo-me a face. Ao fundo o azul do mar quebrava o horizonte e na falésia apenas o vento me acompanhava. Distraí-me a observar o recorte da costa, com as suas entradas e rochas, numa cor castanha especial e marcada pelas ondas que de forma gentil morrem naquela parede escarpada. Um bando de pássaros sobrevoa o meu carro e caí picado sobre o mar tentando acertar com o bico nalgum peixe mais distraído. À direita um pequeno areal branco, límpido e vazio nasce no meio de uma baía. A praia não está ainda marcada e decido descer para sentir os grãos de areia nos meus pés. Descalço avanço marcando com pegadas firmes o quente areal que se estende diante de mim. As ondas estão a dormir, fazendo apenas uma pequena espuma branca dando um brilho especial a um azul transparente e apetecível. De sapatos na mão aproximo-me do mar e quando a humidade já toca nos meus dedos pego num seixo e atiro-o com vontade contra o ar. Três vezes bateu na crista antes de morrer no fundo. O vento parece que percebeu e respondeu com uma pequena rajada que atirou o meu cabelo para trás e refrescou-me a cara com salpicos frios daquela água.

Recuei e em areia fofa decidi sentar-me e curtir o sol. Brinco com a areia fazendo-a passar por entre os meus dedos enquanto finjo que a tento agarrar na mão, fechando-a com muita força e deixando os pequenos grãos fugirem aos poucos e poucos. O sol estava agora mais forte batendo de frente nos meus olhos. Deitei-me de costas e fiquei a observar o céu. Não sei quanto tempo passou, perdi-lhe a conta mas sei que pareceu que o tempo parou e apenas fiquei eu e o sol num turbilhão de pensamentos e questões que me assolavam o espírito, inquieto e impulsivo. De olhos fechados sentia cada aragem, cada sopro do vento e cada onda que rebentava agora com um pouco mais de força na areia. O sol avisou-me da chegada do fim da tarde e com uma vontade nula levantei-me e afastei-me, sorrindo, do mar. Já com os pés na rocha comecei a subir em direcção ao meu carro, sozinho e abandonado no cimo da falésia. A viagem pareceu uma eternidade, subindo, subindo, pelo meio de rochas, calhaus e pedras. O suor escorria-me pela face e pelo peito e o cansaço relembrava-me a minha falta de forma. Finalmente num pulo desesperado atingi o cimo da escarpa e à minha frente o carro repousava. Entrei e já com o ar condicionado ligado deixei o rádio invadir o habitáculo. Que som fantástico, que magia musical ecoava agora. De forma forte as colunas debitavam agora um sentido blues onde uma guitarra chorava acompanhando a voz negra do cantor. Emoção, sinto sempre uma emoção quando oiço aquela guitarra.

O barulho do motor faz-me subir a adrenalina e sinto na ponta do pé a força do carro. Ele já se quer ir embora mas eu ainda lanço um último olhar para aquele mar que recebe agora o sol, adormecendo longínquo no horizonte. Encaixo uma primeira e num arranque rápido faço-me à estrada. O pó que levanto relembra-me aventuras passadas e paragens distantes. Divirto-me provocando pequenas derrapagens traseiras e ainda antes de chegar ao asfalto faço um semi peão sentido uma liberdade imensa agarrada nas minhas mãos. Já na estrada abro a capota e deixo a lua e o vento fazerem-me companhia na viagem de regresso. Não está frio mas mesmo assim ligo o ar condicionado para o quente e aqueço o banco. A noite está fantástica, estrelada e limpa como uma verdadeira noite de verão. Faço a viagem devagar, sem pressas, brincando com as curvas da estrada e aproveitando cada km da paisagem. De regresso à cidade sou recebido por uma guarda de honra, com o Mosteiro de D. Manuel de um lado e a Torre dos Navegadores do outro. Numa avenida despida de carros tiro as mãos do volante e deixo o destino me conduzir. O rio lança-me olhares de pecado e as luzes da velha Lisboa jubilam com o meu regresso. Até o castelo se iluminou para esta noite e das suas muralhas fios de luzes descem para me acompanharem. Subo a um Chiado cheio de vida e perco-me num mar de gente em busca de um local de descanso. Numa imensidão de ruas e ruelas acho um pequeno recanto, pacato, tão típico como um bairro lisboeta, onde o fado e o chouriço são reis numa noite onde as estrelas me acompanham sem nunca me negarem o seu brilho. A voz potente de uma fadista acompanha o bife do meu jantar e nas notas que se soltam das cordas de uma guitarra sinto arrepios que me percorrem a espinha e humedecem-me os olhos. Por entre duas músicas devoro uma farinheira assada. Que sabor, que textura, não há nada que se compare à cozinha lusa e aquela farinheira merecia um prémio culinário. De alma cheia oiço um último fado e com a imagem de toiros e forcados na cabeça decido terminar a noite. A caminho de casa oiço Mariza. Fado comercial dizem uns, cantora da moda dizem outros mas nada me importa, só tiro sentimentos daquelas letras e arrepios daquela voz. Pouco tempo depois estou em casa, acendo a lareira e deito-me na rede, transportando-me imediatamente de volta aquela praia. No baloiçar do destino ainda tenho tempo de ligar o leitor de cd’s mas já nem acabo de escutar a primeira música. Cansado e feliz adormeço saboreando pela ultima vez na noite a farinheira e escutando as ondas com que comecei o meu dia.

1 Comments:

Blogger 125_azul said...

No baloiçar do destino... ahhhh, bonito, inspirado! Beijinho, semana feliz

23:55  

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