Monday, June 26, 2006

No topo da cidade

Sentei-me no horizonte, sobre uma cidade meia adormecida, com uma lua cheia a iluminar as ruas cinzentas e frias da noite. Com os telhados por companhia desci os olhos sobre a calçada num desvio triste e sem compromisso. Vaguiei por ruas e calçadas, becos e praças, avenidas e ruelas, subi e desci as colinas e até abracei as muralhas do castelo que imponente olhava severo para mim com ar de reprovação. Baixei ao rio e quase toquei nas águas e fugi da ponte por entre luzes e focos que me encadeavam e deixavam perdido no meio do nada, suspenso no meu ser com a chuva como testemunha.
Lá em baixo, perdida numa avenida, numa qualquer avenida cheia de olhos e vazia de emoções, encontrei-a. Com a forma de uma ilha exótica, mistica, desenhada em traço livre, navegava à deriva por entre corpos libertos e cegos. Estava meio submersa como um banco de areia e era frágil como um banco de coral. Cruzamos olhares, eram meigos, de tudo no seu olhar destaco isso. Não me lembro da cor, nem do tom, mas dos sentimentos que mostravam. O nariz grego morria sobre dois lábios perfeitos, pequenos e rosados, mas não de um rosa qualquer, era um rosa especial, pintado numa palete de cores únicas, tocadas pelos deuses na sua concepção. O cabelo era um mar de ondas cheios de navios e portos esquecidos que descia sobre um pescoço pálido e singular.
Trocamos duas palavras e descobrimos canções e poemas. Estavamos sozinhos entre milhares e levei-a comigo para o topo da cidade. De cima das estátuas trocamos abraços e caricias, promessas e juras, feitiços e rezas. Trincamos fruta fresca, deixando cair pequenas gotas sobre os pés, refrescando a alma e tocando o Olimpo. A chuva, essa tinha parado e a água nascia agora nas nossas fontes criando um rio pelo peito e morrendo feliz sobre a cintura. A cidade ficava agora despida e a noite dava lugar à madrugada com o Sol a ameaçar nascer sobre os nossos olhos. Bem abraçados e num diálogo de silêncios esperamos pelos primeiros raios. Eram quentes e profundos, de uma luz branca transparente e de um gentileza feminina.
Deu-me a sua mão e voamos juntos pela cidade em circulos loucos e desmedidos que nos faziam passar junto das primeiras cabeças da manhã. Parámos num barco ancorado, preso por amarras ao cais, sujo e marcado por viagens que nunca se fizeram. Um silvo marcou a partida e um último beijo selou a noite. Olhei-a uma última vez e vi-lhe a alma nos olhos. Desci decidido e confiante por umas escadas já gastas e subi a uma colina para lhe desejar boas viagens. Do rio até ao castelo não parei de sorrir. A cidade continuava séria, de sorriso fechado mas cumplice e acolhedora. Vê-la assim ao longe, de cabelo solto ao vento e de mãos esticadas para o infinito enquanto agarrava um ultimo abraço meu foi uma imagem que gravei no marmore da minha alma e quando as nuvens a cobriram e a neblina envolveu o seu barco desci das muralhas e encontrei no canto do meu quarto a cama onde pousar o meu peito. De forma gentil e de olhos bem fechados, guardando no fundo a sua imagem, deixei-me cair e em segundos rezei por ela e por mim.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Adoro sonhar ao ler os teus textos e imaginar os locais e pessoas que descreves ... please continua a escrever. O teu livro tambem !

02:16  
Blogger Pitucha said...

"Vi-lhe a alma nos olhos", gostei. Muito.
Beijos

08:02  
Blogger Marta Vinhais said...

Todos nós a conseguimos ver quando temos paixão, seja pela vida, por nós próprios seja por quem nos preenche a vida.
Obrigada pelo comentário que deixaste no meu blog. Gosto muito das tuas visitas e de estar aqui.
Beijos e abraços
Marta

09:14  

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